"Esta mulher, ao transformar-se em todas as pessoas por quem passava, perdia-se a si própria, tornava-se ninguém. Esta mulher com milhares de rostos, máscaras, personae - como se sentiria neste remoinho de identidades? Exactamente naquele momento o acumular de pressões, tanto nela como nos outros, estava a aproximar-se rapidamente do ponto de explosão. De súbito, desesperada, a mulher dirigiu-se a um beco (...). Aí, parecendo estar violentamente enjoada, expeliu, de forma tremendamente acelerada e abreviada, todos os gestos, posturas, expressões, todo o reportório comportamental das últimas quarenta ou cinquenta pessoas por quem tinha passado. Foi como se estivesse a «vomitar», a «expelir» as identidades das pessoas que a tinham possuído.
Estes «supertourétticos» devem encontrar-se numa posição existencial extraordinária, mesmo única, não por sua culpa mas por causa de um subterfúgio orgânico. Posição essa que tem algumas analogias com a do violento «super-Karsakov» [síndrome neurológica caracterizada por sintomas de amenésia] (...). O karsakoviano, felizmente, não tem consciência do que se passa, mas o touréttico, apercebe-se da sua condição com uma ironia e perspicácia dolorosas e talvez finais (...). O paciente com uma síndrome Korsakov é guiado pela amnésia, pela ausência, enquanto que o paciente com uma síndrome de Tourette é guiado por um impulso extravagante, um impulso do qual ele é, ao mesmo tempo, o criador e a vítima, um impulso que ele pode repudiar mas do qual não se consegue desfazer. Ele é iludido, seduzido, assaltado por impulsos interiores e exteriores, impulsos orgânicos e convulsivos mas também pessoais (ou antes, pseudopessoais) e sedutores. Como consegue o ego suportar este bombardeamento? A identidade sobreviverá? Ou será subjugada, transformar-se-á numa «alma tourettizada»?
Hume escreveu: "Aventuro-me a afirmar que não somos mais do que um molho ou colecção de sensações diferentes que se sucedem com uma rapidez inconcebível num fluxo e movimento perpétuo."
Isto não é, evidentemente, o que se passa com um ser humano normal porque nós possuímos as nossas próprias percepções. Não são um mero fluxo, são nossas, unidas por uma individualidade permanente. Mas o que Hume descreve pode ser precisamente o caso de um ser instável como o supertouréttico, cuja vida é, até certo ponto, uma sequência de percepções e movimentos aleatórios ou compulsivos, uma agitação irreal, sem centro nem sentido. Neste aspecto é mais um ser «humeano» do que um ser humano."
in "O homem que confundiu a mulher com um chapéu" - Oliver Sacks
terça-feira, setembro 28
O Ser «humeano»
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Passei e gostei!
Mas pode ser menos cinza?
um Abraço
Lagartinha de Alhos Vedros
Obrigado pela "passagem". Podia sim, mas não era a mesma coisa :P Sim estou a pensar em mudar o layout à coisa, também já me cansei do cinza. Mas para isso é preciso ter tempo e disposição.
Já agora conheço o "Lagartinha de Alhos Vedros" de algum lado?
Enviar um comentário