terça-feira, setembro 28

O Ser «humeano»

"Esta mulher, ao transformar-se em todas as pessoas por quem passava, perdia-se a si própria, tornava-se ninguém. Esta mulher com milhares de rostos, máscaras, personae - como se sentiria neste remoinho de identidades? Exactamente naquele momento o acumular de pressões, tanto nela como nos outros, estava a aproximar-se rapidamente do ponto de explosão. De súbito, desesperada, a mulher dirigiu-se a um beco (...). Aí, parecendo estar violentamente enjoada, expeliu, de forma tremendamente acelerada e abreviada, todos os gestos, posturas, expressões, todo o reportório comportamental das últimas quarenta ou cinquenta pessoas por quem tinha passado. Foi como se estivesse a «vomitar», a «expelir» as identidades das pessoas que a tinham possuído.

Estes «supertourétticos» devem encontrar-se numa posição existencial extraordinária, mesmo única, não por sua culpa mas por causa de um subterfúgio orgânico. Posição essa que tem algumas analogias com a do violento «super-Karsakov» [síndrome neurológica caracterizada por sintomas de amenésia] (...). O karsakoviano, felizmente, não tem consciência do que se passa, mas o touréttico, apercebe-se da sua condição com uma ironia e perspicácia dolorosas e talvez finais (...). O paciente com uma síndrome Korsakov é guiado pela amnésia, pela ausência, enquanto que o paciente com uma síndrome de Tourette é guiado por um impulso extravagante, um impulso do qual ele é, ao mesmo tempo, o criador e a vítima, um impulso que ele pode repudiar mas do qual não se consegue desfazer. Ele é iludido, seduzido, assaltado por impulsos interiores e exteriores, impulsos orgânicos e convulsivos mas também pessoais (ou antes, pseudopessoais) e sedutores. Como consegue o ego suportar este bombardeamento? A identidade sobreviverá? Ou será subjugada, transformar-se-á numa «alma tourettizada»?

Hume escreveu: "Aventuro-me a afirmar que não somos mais do que um molho ou colecção de sensações diferentes que se sucedem com uma rapidez inconcebível num fluxo e movimento perpétuo."
Isto não é, evidentemente, o que se passa com um ser humano normal porque nós possuímos as nossas próprias percepções. Não são um mero fluxo, são nossas, unidas por uma individualidade permanente. Mas o que Hume descreve pode ser precisamente o caso de um ser instável como o supertouréttico, cuja vida é, até certo ponto, uma sequência de percepções e movimentos aleatórios ou compulsivos, uma agitação irreal, sem centro nem sentido. Neste aspecto é mais um ser «humeano» do que um ser humano."

in "O homem que confundiu a mulher com um chapéu" - Oliver Sacks

terça-feira, setembro 21

Oliver Sacks blow to the head disease

"Maybe that car accident we had, gave me some weird
Oliver-Sacks-blow-to-the-head-disease."


by Brenda in Six Feet Under

Curioso como as coisas se encontram e cruzam. Talvez não saibam, mas há uma paixão em mim que se chama Oliver Sacks, um neurocirurgião inglês, o senhor do excerto que ainda à poucas horas postei aqui.

Adoro os livros, os temas (neurologia e as síndromes mais estranhas à face da terra), a maneira como fala e explica, mas adoro sobretudo a sua humanidade. É fascinante a sensibilidade que tem perante uma área e meio tão científico, clínico, diria até lógico e racional que tende a ser frio. Toca e deixa-me com uma vontade enorme de o conhecer.

Leiam os livros dele (sempre com nomes tão sugestivos e caricatos) que vos garanto que passarão a encarar alguns aspecto da vida de maneira diferente. Como é tão fácil que nos seja mudado o ângulo de visão, a perspectiva com que vemos e encaramos as coisas. É incrível, como tantos outros seres têm planos de visão, perspectivas tão amplamente diferentes de nós, e como vivem tão normalmente na sua realidade como nós vivemos na nossa. Penso que isto é o cerne central dos seus livros.

Não estão a perceber nada pois não? Sugiro-vos o "Um antropólogo em Marte" ou o livro actual de minha leitura "O homem que confundiu a mulher com um chapéu". Delicioso.

A frase com que começo este post, iniciou o último episódio (acabado de ver) de Six Feet Under - também uma paixão, ainda que recente. Em sintonia, numa onda de "a ficção imita a vida real", uma das personagens saí-se com uma referência deliciosa sobre este senhor, que me é tão querido, e que poucas horas antes tinha citado. Coincidência? Ironia. Como eu adoro ironias.

Excesso

"Como é irónica a expressão «perigosamente bem». Exprime precisamente o paradoxo, a duplicidade de se sentir «bem de mais».
O excesso é simultaneamente um dom e um flagelo; provoca simultaneamente deleite e angústia. Os pacientes com mais capacidade de introspecção sentem este paradoxo. «Tenho energia a mais», disse um doente com a síndrome de Tourette, «as coisas têm brilho a mais, impacte a mais. É uma energia febril, um brilho mórbido.»
«Perigosamente bem», «brilho mórbido», uma euforia enganadora que esconde abismos negros. É esta a armadilha que o excesso estende, quer seja o excesso natural sob a forma de uma desordem intoxicante quer seja um excesso pessoal sob a forma de um vício excitante."

Oliver Sacks in "O homem que confundiu a mulher com um chapéu"

domingo, setembro 19

Salada de fruta

Entre blogs e histórias, cantigas e CDs, guitarras e à capelas, coscuvilhices e cafés, vamos contando nas entrelinhas os desejos e expondo as feridas, num registo mais sério mas escondido, disfarçado, e que rapidamente é "esquecido". É este o nosso tom, o registo em que andamos. São curtos os tempos e os espaços estranhos, mas são momentos seguros e com valor. Sabemos disso e guardamos cá dentro, são registos que vão crescendo.

Em hora tardia mas antes do tempo, o carro segue rumo de volta a casa, sempre com cantigas e parvoeiras, músicas antigas mas cheias. O carro pára em frente à casa e com despedida breve seguimos caminho, mas fica sempre a sensação que isto é para durar, que é pena não acontecer mais vezes. O tempo é sempre ocupado e a desculpa muito grande, mas é assim que sabemos viver um com o outro, com pouca distância mas grande. Que isto é coisa que já tem história, já é do antigamente, pois há coisas que ficam e são para sempre.

(Eu juro que não estava a tentar fazer com que isto rimasse...não consegui, parece parvo!).